O Rei do conflito humano -

David Fincher - O Diretor que molda a personalidade e a vida das pessoas

Esse tão perfeccionista diretor que começou a carreira dirigindo clipes para nada mais nada menos que a rainha do pop, Madonna (ele é responsável pelos icônicos Express YourselfOh Father e Vogue) além do inesquecível Freedom!’ 90 de George MichaelLove is Strong dos Rolling Stones e até Suit & Tie do Justin Timberlake (tendo ganho Grammy de melhor videoclipe pelos dois últimos citados). Porém, poderíamos não ter descoberto quão talentoso Fincher é no cinema se ele tivesse desistido depois do fracasso de Alien 3, continuação do clássico de Ridley Scott, perpetuado logo após porJames Cameron e que acabou parando em suas mãos, sendo seu “debut” como diretor de cinema. Sorte a nossa que ele não se deixou ser deglutido por Hollywood.

Seven (ou Se7en, estilizado), seu segundo filme, chegou como um belíssimo soco no estômago. Com Brad Pitt Morgan Freeman nos papeis principais, nos coloca de joelhos com uma história que transita entre o thriller psicológico e o suspense policial em que caso o roteiro caísse em outras mãos, poderia até parecer piegas e desnecessário. Mas nas mãos de Fincher não. Ele o conduz muito além da superfície, apresentando o lado obscuro e se entranhando na mente de um serial killer, que pensa e age de uma forma (digamos) bem particular. Seu modus operandi se baseia nos sete pecados capitais: gula, cobiça, preguiça, luxúria, vaidade, inveja e ira. Beirando o primitivo, algo que se forja dentro do próprio ser humano, a essência da loucura e da anormalidade.

 

O filme seguinte, The Game, não empolgou tanto quanto Seven, talvez pelo roteiro um pouco batido, mas não deixa de ser interessante. Colocando Michael Douglas no papel de um grande acionista que possui tudo que pode querer materialmente (mas não emocionalmente) e Sean Penn como o irmão bon vivantque o presenteia com um “convite dourado” (nem tão dourado assim) de uma empresa de entretenimento, um jogo que coloca o protagonista enredado em paranoias, tramas e transforma um milionário e visto como senhor de si em um homem literalmente indigente a ponto de quebrar emocionalmente de todas as formas, Fincher consegue contornar as muitas falhas do roteiro e nos entregar um até divertido jogo de gato e rato. Fica a observação: até onde alguém com tantos traumas e que se reprime absurdamente emocionalmente pode quebrar e não ver nenhuma saída além de se autodestruir? Esse é o ponto de David nesse filme. Como a obsessão por um pouco de emoção pode desencadear situações que saem do controle e se transformam em problemas quase impossíveis de serem solucionados.

 

Em 1999, chegaria o que até hoje é considerado a obra-prima de Fincher: The Fight Club. Para falar sobre ele, terei que quebrar a principal regra do Fight Club, mas Tyler Durden me perdoaria, não? Em termos de conjunto, esse filme é apontado como o mais completo do diretor, e eu não ouso discordar. Aqui, ações, atuações, efeitos especiais, forma e substância, fotografia, paleta de cores… Tudo se encaixa em uma junção que beira a perfeição. Lançando mais uma vez mão de Brad Pitt (em um de seus melhores papeis como Tyler) e escalando Edward Norton (em atuação brilhante, devo ressaltar) e Helena Bonham Carter. Temos a história de um personagem sem nome (o narrador), um homem comum que sofre de insônia e só consegue se curar dela tendo momentos de catarse em grupos de ajuda. Em um desses grupos que ele visita, conhece Marla Singer, uma fingidora que o faz voltar ao progresso zero em relação a cura da sua insônia, e tempos depois, em um avião, conhece Tyler Durden. Juntos, os dois descobrem uma nova forma de catarse, lutando um contra o outro no meio da rua. É aí que o Fight Club toma forma e Durden lidera a seita, com seus pensamentos fortemente anarquistas, mesmo que ele… Hm, não posso mais dar spoiler! Fincher usa a violência e os ideais anarquistas aqui para que consigamos nos enxergar, criticando fortemente o sistema opressor em que vivemos e escancarando para quem quiser ver que muitas das vezes não passamos de marionetes na mão do Estado.

Só em 2002 Fincher retornaria com um novo filme, The Panic Room, estrelado por Jodie Foster + uma jovem Kristen Stewart e um roteiro bem mais comedido, por assim dizer. Mãe e filha ficam presas no moderníssimo “quarto do pânico” da casa de quatro andares no Upper West Side quando a mesma é invadida por bandidos (aqui interpretados por Forest WhitakerJared Leto e Dwight Yoakam), não tendo grandes reviravoltas e cumprindo seu papel de ser um bom thriller de ação meio minimalista.

 

Zodiac, que só saiu em 2007 não nos decepciona em mostrar uma história realmente baseada em fatos reais, num assassino que sacudiu a Califórnia em meados da década de 70, que se autodenominava… Zodíaco! Aqui, o foco principal é mostrar a obsessão em resolver o caso e prender o tal assassino (em um ponto que quase beira a insanidade) do cartunista do jornal chamado Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal), o jornalista Paul Avery (Robert Downey Jr) que entra em uma espiral de profunda depressão por não conseguir solucionar o caso e dois detetives da polícia de São Francisco (Mark Ruffalo e Anthony Edwards), todos seguindo as pistas deixadas pelo serial killer. Suas vidas são bastante dedicadas em suas respectivas profissões, cada um à sua maneira e todos pagam um preço bem alto por todos os anos de frustração na investigação do caso Zodíaco. São histórias que se fundem por um elemento em comum: a vontade de resolver o caso e como essa vontade acaba se transformando em uma obsessão que molda como a vida de cada um seguirá dali em diante. Já percebemos que obsessão e personagens disfuncionais são os temas favoritos de Fincher, certo?

 

Logo após Zodiac veio The Curious Case of Benjamin Button, no ano seguinte, com Fincher e Brad Pitt mais uma vez revivendo sua parceria. O roteiro, baseado em um conto de F. Scott Fitzgerald, nos trás a história de vida de Benjamin, começando com um parto complicado onde sua mãe morre e seu pai o abandona (por causa de sua aparência um tanto assustadora para um bebê: todo enrugado e enrijecido) em um asilo de idosos na cidade de New Orleans. Ele é adotado por Queenie (Taraji P. Henson), uma negra que cuida dos idosos neste asilo e que logo descobre que Benjamin, nasceu velho e vai rejuvenescendo dia após dia, como num ciclo invertido. Benjamin, em idade avançada, apaixona-se pela ainda menina Daisy (vivida na fase adulta por Cate Blanchett), reencontrando-a quando ele está mais novo 20 anos e ela mais velha 20 anos. Uma longa e belíssima história de amor, seja ele materno ou entre homem e mulher, na ótica da profunda melancolia, cheio de insights sobre a vida e morte, experiência e inocência, juventude e velhice.

 

2010, trouxe o arrasa quarteirão The Social Network (o meu filme favorito de Fincher até agora e o melhor daquele ano de 2010, na minha humilde opinião), contando a história do mogul do Facebook, Mark Zuckerberg. Com Jesse Eisenberg (na melhor atuação de sua carreira), interpretando o jovem Mark nos áureos tempos em que ainda era só um estudante de Harvard atingido no ego após uma briga com a então namorada (Rooney Mara), resultando no término da relação, ele cria o site Facesmash (comparando as meninas mais bonitas do campus), com a ajuda do amigo Eduardo Saverin (Andrew Garfield) também brilha e muito como o leal e único amigo de Mark), derrubando o servidor da universidade e chamando a atenção de toda a comunidade acadêmica, inclusive o reitor e os irmãos gêmeos Tyler e Cameron Winklevoss (ambos interpretados por Armie Hammer em um dos mais legais usos da computação gráfica em relação à duplicação de alguém).  Mark ludibria os irmãos Winklevoss, e juntamente com Saverin, criam o site The Facebook, fazendo amizade com Sean Parker (é aqui que vemos a genialidade de Fincher em dirigir na sua forma mais crua, fazendo até Justin Timberlake parecer um ator palatável e adequado a perfeição para o papel que interpreta), e o resto do roteiro é história… O diretor não demoniza Zuckerberg, o retrata como um ser complexo, sem muito traquejo social e difícil de ser compreendido. Fincher não deixa dúvidas que ele é um gênio, porém abre margens para interpretações diferentes de sua persona: ele é realmente assim ou apenas finge que o é, porque é mais fácil ser alguém que simplesmente se omite de suas responsabilidades morais perante aqueles que ludibriou e usou como muleta para alcançar seus objetivos, os descartando após conseguir o que queria?

 

The Girl With The Dragon Tattoo, adaptação do primeiro livro da trilogia Millenium de Stieg Larsson é estrelado por Daniel Craig (o jornalista Mikael Blomkviste) e Rooney Mara (a investigadora punk Lisbeth Salander), sendo bastante fiel a obra que o origina, porém Fincher tira um pouco o foco da possível “humanidade” dos personagens, trazendo o conteúdo mais pesado do livro à tona, mostrando com riqueza de detalhes os assassinatos e o processo de investigação, vivenciando a família Vanger e sua profunda guerra interna, as intrigas políticas no meio das corporações e a questão da mulher agredida, desbocando na consequência fatal: o assassinato que permanece impune e não solucionado. A fotografia do filme se encarrega de ilustrar perfeitamente esse clima de tensão e desesperança, trazendo um contraste entre o verde o restante dos cenários. Talvez o filme mais “fraco” do diretor, por conta do roteiro um tanto deslocado em certos pontos, mas não tira os méritos de Fincher de retratar a adaptação com toda a honestidade possível.

 

Por último, mas não menos importante, chega Gone Girl, outra adaptação dirigida por Fincher, mas que dessa vez conta com a própria autora do livro (Gillian Flynn) comandando o roteiro. Com uma narração dividida, o primeiro que vemos é Nick Dunne (Ben Affleck), um marido que descobre que sua esposa desapareceu no aniversário de casamento deles de cinco anos. Depois, nos é mostrado como ele lida com isso, logo dando espaço para sua irmã e confidente Margo (Carrie Coon) e a perspicaz detetive Rhonda Boney (Kim Dickens). Intercalando entre esses momentos de dúvida, ações suspeitas e investigação policial, Amy Dunne, a esposa de Nick (Rosamund Pike), surge de narradora em off, a partir de um diário, para diversas sequências em flashback, contando como o casal se conheceu e a vida de “sonho” que viviam até seu desaparecimento. Um dos temas latentes de Gone Girl é justamente o paralelo entre jornalismo e sensacionalismo, mostrando que tudo possui dois lados de visão e qualquer um está sujeito a ser manipulado; além disso, nos faz pensar na instituição “casamento”: o que exatamente é? o que um casal têm de renunciar para que ambos consigam viver em harmonia? qual o preço que se paga por uma escolha errada quando você divide sua vida com um outro alguém num relacionamento? Creio que Fincher não quis trazer respostas a estes questionamentos que surgem durante o filme, porém incitar a reflexão sobre o que um relacionamento é.

Vemos que David Fincher é sobretudo, um entusiasta da psique humana e seus conflitos, trazendo sempre alguma forma de obsessão ou descontrole vinculada a suas histórias. Ele retrata pessoas reais, pessoas que podem até não estar na sua plenitude total, mas que são terrivelmente humanas e propensas a falhar, a darem vazão a seus sentimentos de uma forma até primitiva em certos contextos, sempre mostrando que vida é um reflexo das suas escolhas, e que uma vez que elas são tomadas, não se pode fingir que talvez coisas não tão boas acontecerão.

Vida longa a David Fincher.

Ps. se vocês estão se perguntando porque Alien 3 não entrou na lista, apesar de ser um filme dirigido por ele: eu não o considero assim. Ele não o tem em sua totalidade, foi algo que simplesmente caiu no colo dele e talvez teria até sepultado sua carreira.

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