HISTÓRIA -

Morre Agenor Almeida, aos 102 anos de idade, no Rio de Janeiro

CINTURÃO DE FOGO

Uma releitura sobre os incêndios em Teresina nos anos quarenta


Toni Rodrigues
Jornalista e Escritor (*)


Estamos em 1943. Desde 1939, Teresina é atormentada por incêndios que ocorrem com freqüência e intensidade cada vez maiores. Os sinistros têm hora para acontecer -- mas acontecem principalmente entre dez horas e meio-dia, quando o calor é mais intenso e ajuda as chamas a cumprirem sua trajetória de devastação.
Súbito, tocam os sinos da Igreja de São Benedito. Gritos de aflição e desespero podem ser ouvidos a quilômetros. A fumaça negra encobre a cidade, como uma redoma de desgraça espalhada pelo vento de agosto, mês do desgosto. As labaredas devoram dezenas -- e pouco depois, centenas -- de casebres. O bairro Piçarra está em chamas, que não tardam a lamber também o Cajueiro, para além do Barrocão, empurradas por mãos invisíveis.
A Mesopotâmia Nordestina é, na verdade, um cinturão de fogo. Centenas de famílias pranteiam suas coisinhas poucas e suas casinhas miseráveis, sem nada em que se apegar. A iminência da tragédia constante salta aos olhos. A qualquer momento, um novo incêndio. Por toda a cidade, sem-teto se abrigam sob árvores, disseminando a atmosfera de indigência de uma época de ruptura, em que o poder empregou todos os meios para criar um novo homem e uma nova sociedade -- sobre as cinzas dos antigos; uma sociedade em que não haveria lugar para os frágeis, em que somente os “bravos e fortes” haveriam de sobreviver.
Eram dias terríveis, em que a cidade finalmente começava a perder sua inocência. A capital conta com cerca de oitenta mil habitantes. Levantamento realizado pelo Governo do Estado mostra que há quatro mil casas de alvenaria contra 12.700 de palha. Estas casas rudimentares fazem parte do cenário de Teresina desde os seus primórdios. José Antonio Saraiva, o fundador, instalou a primeira sede do Executivo Provincial num barracão de palha situado no Largo da Bandeira. A abundante floresta de babaçuais às margens do Parnaíba forneceu a matéria-prima para tais construções, acentuadas pelas ondas migratórias do final do século 19 e princípio do século 20. A migração explodiu a partir dos anos 20 com João Luiz Ferreira no poder. Político de rara projeção, engenheiro civil e consciente da necessidade de ligar Teresina a outros centros do país, iniciou o processo de construção de estradas de rodagem. Antes, eram apenas as veredas estreitas, ao longo das quais aglutinavam-se bandos de malfazejos à espera dos viajantes desavisados
Em relatório datado de 1942 e encaminhado ao presidente Getúlio Vargas, o governador Leônidas Melo informa que “fato que teve alguma repercussão e merece por isso referência foi a situação da nossa capital durante os meses de agosto e outubro, duramente castigada por repetidos incêndios que consumiam casas de palha da população pobre dos subúrbios”. O interventor acrescenta que realmente algumas dezenas de famílias pobres ficaram então sem teto por alguns momentos. “Todavia, o amparo e a assistência que lhes proporcionou o governo do Estado serviu muito para minorar o sofrimento dessas vítimas”, complementa Leônidas Melo. “Assim, foi facilitada a reconstrução imediata das casas, dispensando os impostos e taxas correspondentes, fornecidas gratuitamente telhas para cobertura e finalmente organizadas sob o patrocínio do Estado uma comissão para estudar e proporcionar auxílios indispensáveis às vítimas dos abomináveis atentados.”
Segundo o interventor, empreendeu-se notável esforço na repressão aos incendiários. “Toda a Guarda Civil foi utilizada sem descanso, assim como os agentes de Polícia Civil, grande contingente da Força Policial e até elementos do 25 B/C, cuja colaboração foi preciosa e eficiente”, diz. “A partir de outubro, dadas as providências adotadas, difícil se tornava o prosseguimento das atividades dos incendiários. Assim é que, em novembro, já não se registravam incêndios e apenas algumas tentativas frustradas.” Infelizmente, a correspondência do governador abusou da retórica. Os incêndios prosseguem, cada vez mais terríveis, afetando a pobreza e desabrigando milhares. Teresina é um grande paiol. Em pouco tempo, percebeu que a resolução do problema não dependia apenas de boa vontade ou de força de expressão. Era preciso agir energicamente no enfrentamento da crise -- e dos seus causadores.

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Na foto, Toni Rodrigues entrevista Agenor Almeida, em 2006

OS PORÕES EMERGEM

E assim se passaram sessenta anos, desde que o capitão-médico da Polícia Militar Agenor Barbosa de Almeida recebeu, do governador Leônidas de Castro Melo, a arriscada missão de desvendar os segredos dos porões do Estado Novo no Piauí, personificado pelo próprio Leônidas. Mas o poder, de fato, era exercido por outra autoridade -- o temido Evilásio Gonçalves Vilanova, coronel do Exército, comandante da Polícia Militar e secretário de Segurança do Estado, um homem de gestos delicados e aspecto agradável; no entanto, possuidor de um caráter frio e sanguinário.
Querem alguns que a verdade permaneça envolta no manto do mistério e que a responsabilidade pelos traumáticos incêndios ocorridos em Teresina nos anos quarenta tenham, ainda nos dias de hoje, autoria desconhecida. O governador ofereceu contribuição decisiva para que esse conceito se mantenha até agora, porque ao mesmo tempo em que buscava a verdade para si ele a negou para, ou pelo menos tentou negar, para todo o restante da sociedade piauiense.
Aos 98 anos de idade, o médico Agenor Barbosa de Almeida reside no Rio de Janeiro desde a década de 60. Ele se mudou para a outrora Cidade Maravilhosa depois de fracassar na tentativa de ser vice-governador do Estado. Antes, fora prefeito de Teresina, derrotando em 1955 o esquema do então prefeito João Olympio de Melo. Sua eleição foi o reconhecimento pelos serviços prestados como médico numa cidade em que ainda é precária a condição de saúde da maioria da população -- e como cidadão, pela coragem em desvendar um sinistro e poderoso esquema de tortura e morte nos porões do Estado Novo no Piauí.
\"O governador Leônidas me chamou em palácio e me pediu que reunisse uma Junta Médica para investigar as denúncias de tortura nas dependências do quartel da Polícia Militar\", relembra Agenor Barbosa de Almeida, por telefone, na véspera do Natal de 2005. \"A cidade estava apavorada pela escalada do terror, que já fizera inúmeros cadáveres entre a parcela mais pobre da população. Era preciso ter muito cuidado, me disse o governador, porque o coronel Evilásio Gonçalves Vilanova era um homem muito poderoso. Era o homem forte do governo. Tinha poderes quase ilimitados. Era o chefe de polícia num Estado policial, num regime de exceção violento como era o Estado Novo\".
Agenor nascera em Palmeirais, região do Médio Parnaíba piauiense, em 1907, filho do coronel Joaquim Barbosa de Almeida e da dona de casa Raimunda Barbosa de Almeida. Foi o primeiro médico a tornar-se oficial da Polícia Militar do Piauí, formado pela Universidade do Brasil e especialista em doenças tropicais. Sua estréia na vida pública se deu num momento igualmente traumático para a sociedade piauiense. Havia uma epidemia de malária na Colônia Agrícola de David Caldas. Trata-se de doença que se caracteriza por febre intermitente e renitente. Inúmeros profissionais de saúde foram enviados para combater o problema naquele que era um dos mais importantes projetos agrícolas do governo ditatorial no Estado do Piauí. O interventor Landri Sales, no início da década de 30, criara o espaço como uma espécie de laboratório com o objetivo de garantir o retorno do rurícola ao seu lugar de origem. Conteria, desse modo, o êxodo rural, ao mesmo tempo em que propiciaria ao Estado uma oportunidade real de crescimento no setor agrícola, base da sua economia.
Situada à margem do rio Parnaíba, entre as cidades de Teresina e União, a colônia estava prosperando conforme o esperado. Subitamente, os colonos foram acometidos por um estranho mal que ceifou inúmeras vidas. Os médicos para lá enviados também adoeceram e retornaram para Teresina. Não quiseram mais trabalhar na colônia, temerosos que ficaram. Temiam pela própria vida e recomendaram que o local fosse isolado a fim de evitar a proliferação do contágio. Nenhum profissional de saúde queria ir para o local e os lavradores continuavam morrendo.
Foi quando descobriram aquele jovem médico desempregado, que estudara doenças tropicais no Rio. Agenor Barbosa de Almeida rumou para a colônia com uma disposição que deixou seus colegas de profissão apreensivos. \"Muito cuidado\", disseram-lhe. \"Parece-nos que há uma progressão tremenda do contágio. Não sabemos a razão e muito menos o que fazer para evitar a proliferação\".
Entre as providências adotadas pelo médico, a aplicação da quinina em todos os doentes. Alcalóide vegetal, extraído da casca da quina, o medicamento era dos poucos utilizados na época para o tratamento de estados febris interrompido a espaços. Contratou guardas sanitários e os espalhou por toda a extensão do lugarejo. Ato contínuo, mandou que fossem drenadas as lagoas que existiam dentro da colônia e procedeu-se uma limpeza nos riachos. O objetivo: atacar a doença em suas origens. O mosquito Anophelys foi completamente erradicado e Agenor tornou-se, ao custo de muita dedicação, um prestigiado profissional da área médica -- tão prestigiado que obteve indicação do próprio interventor Leônidas Melo para dirigir o Hospital Getúlio Vargas, construído em 1941 e considerado um elefante branco, como tantas outras obras do Estado Novo em Teresina. Foi presidente do Instituto de Assistência Hospitalar do Piauí, secretário-geral do Estado, deputado estadual nos períodos de 1947 a 1951 e de 1951 a 1955, primeiro vice-presidente da Assembléia, governador em exercício do Estado no período de 4/3/1952 a 11/3/1952 e prefeito de Teresina no quadriênio 31/1/1955 a 31/1/1959.

CHOQUE CULTURAL E SOCIAL

A ditadura varguista provocou um choque muito grande em todo o Estado, tanto na área cultural quanto no setor de infraestrutura. Em 1930, quando Getúlio Dornelles Vargas assumiu o poder, a cidade era provinciana ao extremo. Luz elétrica era privilégio de poucos -- alimentada por uma velha usina a lenha que fora inaugurada em 1914 na gestão de Miguel de Paiva Rosa. A iluminação pública era feita por lampiões. O abastecimento d\'água fora implantado em 1904, na administração do então governador Arlindo Francisco Nogueira, mas atendia pouquíssimas casas. A maioria se abastecia da água apanhada nos rios Poti e Parnaíba e transportadas em ancoretas nos lombos de burros. A área central compreendia, no sentido Leste/Oeste, o perímetro que vai da Igreja de São Benedito, no Alto da Moderação, à avenida Beira Rio, hoje Maranhão; e, na direção Sul/Norte, o trecho entre a praça Saraiva e a rua Lisandro Nogueira (antiga rua da Glória). As cercanias eram ocupadas por casas de taipa e palha.
Vargas queria romper com o antigo, não apenas em Teresina, por isso destinou verbas para a implantação da infraestrutura e do saneamento nas capitais. O governador Leônidas Melo e o prefeito Lindolfo do Rêgo Monteiro receberam transferências vultosas em recursos para a abertura e calçamento de ruas e sua consequente arborização e embelezamento e a construção de prédios. Datam, do período, o gigantesco HGV (na época em que foi construído não havia tantos doentes; sobravam pavilhões e críticas ao desperdício), o Hotel Piauí (hoje Luxor Hotel), construído sob os escombros do antigo Café Avenida e que durante muito tempo serviu de abrigo para os mendigos e o Arquivo Público, construído com o material que sobrou do Hospital Getúlio Vargas.
Em 1936, primeiro ano da gestão de Lindolfo Monteiro, foram construídos cerca de 4.900 metros quadrados de calçamento. Nos anos seguintes, até 1940, nada menos que 10.900 mil metros quadrados. Ainda em 1936, Monteiro implementou os trabalhos de urbanização da avenida Frei Serafim -- antes uma região ocupada por chácaras e pequenas fazendas. Foi promovida a arborização de ruas e avenidas. Durante o Estado Novo, a cidade ganhou farta iluminação pública. Teresina ganha um Código de Posturas, que proíbe a construção ou reconstrução de casas de palha nas áreas urbanizadas .
Época de grande efervescência cultural, havia animadas tertúlias no Clube dos Diários, apresentações artísticas e eventos cívicos no Theatro 4 de Setembro e exibições cinematográficas marcantes no Cine Rex (“o melhor som da cidade”), pertencente aos empresários Alfredo Ferreira e Bartolomeu Vasconcelos. O Estado Novo é um grande paradoxo, pois ao mesmo tempo em que tenta construir uma nova realidade estrutural -- calcado no princípio da urbanidade e da civilidade -- trata o ser humano e seus valores e vulnerabilidades com extremo desprezo.

DIVERSIDADE HUMANA

A enorme diversidade humana atraída para a cidade não tardaria a se mostrar extremamente nocivo. Quase que diariamente ocorriam confrontos na periferia. A exploração do látex na Amazônia transformou Teresina em rota de passagem dos chamados “soldados da borracha”, que promoviam conflitos violentos.Eram comuns os distúrbios, especialmente na área do baixo meretrício, na margem do Parnaíba. As brigas explodiam a todo instante, envolvendo filhos da terra contra forasteiros na disputa pelo aconchego das mulheres da vida.
A praça Pedro II, palco da inquietação cultural e social da época, registra um acontecimento da maior significação para a tomada de providências por parte da Interventoria no aspecto da segurança pública. Um conflito do qual tomaram parte soldados da Guarnição Federal e da Polícia Militar colocou em polvorosa as famílias presentes àquele logradouro.
A parte baixa, como sabemos, é utilizada para o passeio dos rapazes e moças da fina flor da sociedade da Chapada do Corisco, ao passo em que, na parte baixa, ficam as empregadas domésticas, operários da Fábrica de Fiação e Tecidos e soldados da polícia e do 25º Batalhão de Caçadores. Há uma rua que corta a praça em diagonal e que além da divisão espacial é também marco da segregação dos menos favorecidos.
De repente, os soldados iniciam uma discussão que logo evolui para o confronto físico. A confusão se espalha na parte baixa da praça, levando os chamados filhos da elite a se queixarem da insegurança aos seus pais, que por sua vez fizeram eco das lamúrias às autoridades. Fazia-se necessário um plano de segurança para a cidade, ainda mais quando nos dias seguintes os distúrbios persistiram, avançando para a periferia e deixando toda a população inquieta.
Foi assim que Evilásio Gonçalves Vilanova veio parar em Teresina. Ele estava servindo na Guarnição Federal do Rio de Janeiro quando foi indicado por Landri Sales ao governador Leônidas Melo. A família do novo homem forte da segurança causou excelente impressão na cidade. A mulher, Nadir, foi comparada a uma atriz do cinema norte-americano, tal a sua elegência. A filha do casal, Marísia, era igualmente bela e, apesar da pouca idade, elegante.
Vilanova, por sua vez, impunha respeito pela altivez. Vestia-se bem e dançava como poucos. Gostava de bons vinhos, de boa música e de boas companhias. Não tarda em impor um estilo adquirido no campo de batalha, onde matar ou morrer tem importância menor do que o objetivo a ser alcançado.

APARÊNCIA CIVILIZADA

O professor aposentado Joaquim Ribeiro Magalhães, 78 anos, chegou em Teresina na década de 40 e testemunhou grande parte das transformações verificadas na cidade ao longo desses mais de sessenta anos. Segundo ele, quem visse o coronel não imaginaria, por trás daquela aparência civilizada, o sádico que ele realmente era. Os incêndios eram um acontecimento de causar dó, até porque era um fato por demais próximo da maioria da população. Segundo Magalhães, a capital não tinha subúrbio. “O bairro Vermelha era pouco habitado, o Porenquanto era a primeira passagem de carros vindos de outras cidades do Norte. Então, o que nós tínhamos eram ruas centrais, como São Pedro, Félix Pacheco, que naquele tempo se chamava São José, Olavo Bilac, que era chamada de Santo Antônio, todo esse espaço era preenchido por casas de palha; até próximo da Praça Saraiva, havia casas de palha”, relembra o professor.
Algumas eram bem servidas, com paredes altas, portas trabalhadas e apresentando condições de moradia. Os proprietários alegavam que a cobertura de palha era uma proteção para o calor intenso da cidade, mais forte entre os meses de agosto e dezembro, quando acontecia a maior parte dos incêndios. Produzir telhas em Teresina nunca foi difícil. O bairro Poti Velho é o maior exemplo disso, onde a produção é intensa atualmente. Na época havia, mas em menor escala.
Sotero Vaz da Silveira, ex-governador do Piauí, residia numa casa de excelentes condições, construída com madeira de qualidade e dispondo de mobiliário também de elevado nível. No entanto, a cobertura era de palha. Era situada na região central. Assim era a maioria das casas na capital piauiense nas primeiras décadas do século XX.
“Quando o fogo pegava, as pessoas diziam que ‘na rua do Cajueiro foram incendiadas cem casas’. Na verdade, só foi uma, essa tendo passado para as outras 99, porque eram todas emendadas uma na outra”, enfatiza Magalhães. “Era desse jeito que o fogo atingia todo um quarteirão. Às vezes o vento levava para o lado oposto, queimando outras 50 ou 60 casas. Ninguém via o céu, só aquela fumaça amarelada e cinzenta.”
Evilásio Gonçalves Vilanova era uma figura comum. Tinha estatura média, traços fisionômicos simpáticos, ligeiramente calvo e que conseguia transmitir, à primeira vista, uma impressão positiva. Tinha um sarcasmo muito grande ao falar. A característica se manifestava mais fortemente quando estava interrogando alguém importante.
Mantinha uma vigilância acentuada sobre toda a sociedade teresinense, não escapando nenhum comentário que se fizesse contra a administração de Leônidas. Seus “olhos” e “ouvidos” estavam em todos os lugares através dos “secretas” que se posicionavam em lugares estratégicos, como Bar Carvalho e Café Avenida.

PROPÓSITOS DE VILANOVA

O escritor e presidente do Conselho Estadual de Cultura, Manoel Paulo Nunes, afirma não ter dúvidas dos propósitos de Vilanova. “Ele queria ser governador, em substituição ao doutor Leônidas, não havia melhor maneira do que desestabilizando a administração. Os incêndios foram a forma por ele encontrada para alcançar seus objetivos, porque ao mesmo em que acusava a oposição, representada por José Cândido Ferraz, de responsabilidade pela autoria, ele prejudicava o governador, expondo o quanto ele era frágil no enfrentamento e resolução da crise\", afirma Paulo Nunes. “Eu acredito, tenho a convicção, sobre os incêndios, de que o autor dessa ignomínia foi o chefe de polícia Evilásio Vilanova. Ele era uma figura sinistra, era um homem perverso, foi comprovado em vários inquéritos, que adotou práticas de atrocidade contra a população de Teresina, principalmente os pobres, que eram duramente castigados para apontar a falsa autoria dos incêndios. Tenho a certeza plena de que ele (Vilanova) foi o autor destes incêndios, apesar de que ele se defendia acusando outra pessoa.”
O comandante da polícia acusava o médico José Cândido Ferraz, militante da UDN -- União Democrática Nacional e crítico ferrenho da administração Leônidas Melo. Proveniente de uma família rica e extremamente culto, Ferraz desprezava a ditadura de Vargas e seus prepostos e chamava Leônidas de “filhote da repressão”.
A disputa foi levada às últimas conseqüências. Da condição de crítico e denunciante, o médico de oposição José Cândido Ferraz logo passaria a réu. De acordo com a versão do governo, ele estaria por trás dos incêndios com o fim de desgastar a imagem do interventor e provocar a sua queda. Nesse momento, a participação da polícia sob o comando de Evilásio Vilanova se intensifica para assegurar a confirmação do argumento oficial. Cerca de duzentas pessoas foram interrogadas na Delegacia de Segurança e Ordem Pública, das quais 37 foram presas e maltratadas. Eram homens do povo, pessoas pobres e sem instrução, que se viram de uma hora para outra espancados e enterrados vivos num festim diabólico de torturas. O objetivo: encontrar responsáveis. Mais que isso: indicar o doutor José Cândido como o grande culpado.
De 1941 a 1943, Evilásio Gonçalves Vilanova transformou-se num carrasco, cuja atuação não encontrava barreiras. A violência e o sadismo do chefe da polícia foram inúmeras vezes comunicados ao interventor, que demorou muito a tomar providências. O assassinato sob tortura do operário Manoel Gomes Feitosa foi determinante para uma tomada de atitude por parte de Leônidas. Só então a sociedade viu que precisava fazer alguma coisa para barrar o sadismo de Vilanova.

CENTRAL DE ARTESANATO, CENTRAL DE TORTURAS

O prédio da central de artesanato foi construído nos anos 30 para funcionar como quartel da Força Policial, logo transformado em centro de torturas do Estado Novo. A rusticidade de sua arquitetura remete a um tempo em que centenas de vozes, clamores e lamentos eram impiedosamente silenciados.
Os suspeitos eram levados primeiro para a Sala de Interrogatórios, onde eram submetidos a intensos e violentos questionamentos que entravam pela madrugada e nos quais os presos eram pessoas humildes que apanhavam e gritavam, muitas vezes até morrer. A cidade ouvia aqueles gritos de medo e dor, mas ninguém, nem mesmo o interventor, tinha coragem de desafiar o poderoso chefe da corporação policial de Teresina.
Os presos também eram levados para lugares desertos, fora da cidade, onde podiam apanhar e gritar ainda mais. O sadismo do coronel Vilanova não tinha limites, ele chegava ao extremo de enterrar suas vítimas até o pescoço para confessar crimes que não haviam cometido.
Albino Alencar era um comerciante de médio porte estabelecido no centro da cidade, à rua Teodoro Pacheco. Tratava-se de alguém bastante chegado ao sexo oposto e que tinha muitas admiradoras. Alto, de feições rosadas e muito bonito, o proprietário da “Casa Tamoio” entrou em rota de colisão com Vilanova. Iniciou-se um processo de detratação mútua, sendo que aqui e ali Albino Alencar dizia alguma coisa que incomodava o chefe de polícia. Pensando que estando na ausência de Vilanova não haveria problema, fazia seus comentários diante de “secretas” a serviço do coronel, que corriam a lhe contar.
Evilásio começou a perseguir Albino, mandando prendê-lo várias vezes. Numa dessas prisões, cavou um buraco no centro de torturas do bairro Ilhotas e jogou o comerciante dentro, enterrando-o até a altura do pescoço. Albino Alencar ficou só com a cabeça de fora e viu a morte de perto. O chefe de polícia queria forçá-lo a assinar um documento acusando o médico José Cândido Ferraz como incendiário. O comerciante nunca cedeu aos maus tratos, sempre recusando a caneta e o papel que lhe eram dados.
Tempos depois de todo esse sofrimento, Albino Alencar conseguiu se eleger vereador de Teresina em duas oportunidades, ambas pela extinta UDN. A população entendeu que, apesar dos piores tormentos, nunca traiu suas convicções políticas e nem lançou a desgraça injustamente sobre seus partidários.

DESABAFO DE LEÔNIDAS

Diante do médico, assessor e amigo, Leônidas desabafou dizendo que não tinha mais nenhuma confiança em Evilásio Gonçalves Vilanova. \"Recebi denúncias de maus tratos contra os presos\", argumentou. \"Preciso que investigue a veracidade e me façam um relatório detalhado da situação.\"
Agenor convocou seu amigo e também médico Antenor Neiva para a empreitada. Eles encontraram muita gente trancafiada e espancada. No relato ao interventor, Vilanova é enfocado como violento e sádico. Informam, ainda, que \"(o operário) Manoel (Gomes) Feitosa tinha lesões graves no corpo, contusões e marcas de chibata. \"Parece que houve ruptura intestinal\", escreveram\". \"O homem está com o abdome muito grande; devido a essa pancadaria, houve alguma lesão intestinal.\" Manoel Gomes Feitosa não tardou a morrer. O chefe de polícia o enterrou sem fazer exame de corpo de delito ou autópsia.
Agenor foi perseguido por Vilanova antes, durante e depois das investigações. O objetivo era claro: fazê-lo parar. O médico não parou, deu seguimento às investigações e apresentou ao interventor um relatório detalhado de toda a situação. “Ali encontrei presos maltratados, sujeitos a todo tipo de sofrimento”, disse ao autor destas linhas em dezembro de 2005. “Mas também ficamos convencidos de que o doutor Leônidas não tinha conhecimento do que ocorriam nas masmorras de Vilanova. Era um quadro deprimente, lamentável, terrível; em que centenas de homens comuns, cidadãos do povo, cujo crime era serem pobres, foram levados para interrogatório e depois trancafiados e espancados como bandidos, numa brutal agressão aos seus mais elementares direitos, seja como seres humanos, seja como cidadãos vivendo sob um regime institucional.”
Segundo ele, em regimes ditatoriais punem-se os crimes políticos. É assim que muitos perdem os seus direitos. Não havia, no seu entender, razões para tantas prisões a não ser a ira do chefe de polícia, que a todo custo queria incriminar o interventor, mostrando-o fraco perante o Governo Federal, ao mesmo tempo em que ganhava pontos firmando-se como o herói que identificara e punira os incendiários, livrando o povo de tamanho tormento.
“Leônidas foi um amigo muito especial ao qual tive a oportunidade de servir\", comenta. \"Infelizmente, com o passar do tempo, foram surgindo as divergências dentro da Interventoria. Lembro-me claramente do episódio em meu cunhado, Clemente Pires Ferreira, que foi preso pela polícia de Vilanova. Procurei Leônidas e pedi a sua intervenção em favor do meu cunhado, o que não aconteceu. O interventor cruzou os braços e deixou que Vilanova praticasse o seu sadismo costumeiro, o que, para a compreensão que eu tinha na época, não passava de retaliação contra mim por causa do relatório que produzi, expondo os bastidores da sua ação como chefe de polícia.\"
Conta que pediu exoneração das funções junto ao governo do Estado e imediatamente aceitou convite dos médicos José Cândido Ferraz e Eurípedes Aguiar para ingressar nos quadros da UDN -- União Democrática Nacional. Elegeu-se, em 1946, deputado estadual, chegando à vice-presidência da Assembléia Legislativa. Em 1951, derrotou o também médico Clidenor de Freitas Santos na disputa pela prefeitura de Teresina.
\"Foi uma disputa acirrada contra o prefeito de então, doutor João Mendes Olympio de Melo, que usou todo o poder da máquina administrativa para me derrotar. O povo ficou ao meu lado, venci a eleição. Ao tomar posse, encontrei a prefeitura completamente sucateada\", destaca. \"Procurei, na medida do possível, fazer uma administração empreendedora. Ao fim de tudo, entendi que o caminho da honestidade, da correção, não gera nenhum interesse por parte do cidadão comum. Isso me desanimou bastante e me levou a abandonar a política.\"
Agenor afirma que pautou sua gestão pela honestidade e decência. Diariamente apresentava, na Rádio Difusora, um boletim com arrecadação e gastos da prefeitura, além do saldo depositado em conta bancária. \"Fazia questão, ao fim de cada informe, de avisar à população que o dinheiro se encontrava depositado no Banco do Brasil\", complementa.

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(*) Autor dos livros \"Conexão Delta do Parnaíba\", \"Matadores de Prefeitos\", \"Coração de Adolescente\", \"Histórias & Crimes\", \"Histórias Policiais & Memórias Ocultas\", dentre outros. Colunista e rpórter especial do portal 180graus. Editorialista do jornal Diário do Povo. Coordenador editorial da Rádio Teresina FM (91,9 MHz). Defensor da Criança e do Adolescente (Ministério Público Estadual), Comendador da Ordem do Mérito Renascença do Piauí (Governo do Estado), Cidadão de Teresina (Câmara de Vereadores).

Fonte: None

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