Literatura -

Conto "Prisões", de Yêssa Cavalcante

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São duas e meia da manhã. Meus dedos vorazes brigam com as teclas do notebook marcando a tela com pedaços de sonhos estranhos de dias anteriores. O quarto frio permanece iluminado apenas pela fraca luz azulada do computador, um quadro pintado por tinta preta no qual o foco adoece meus olhos lentamente.

Olho para o lado, Samuel está agitado do sono. Ele está sempre agitado ultimamente. Respiro fundo e volto a escrever pesadelos até não conseguir mais enxergar as letras na ordem certa. Desligo o computador e deito em meu canto para dormir.

Mal termino minhas orações quando o lado esquerdo da minha cama se mexe. Observo ainda de olhos fechados Samuel se levantar e ir para a porta. Espero ele sair para seguir seu caminho. Eu não sei se Samuel é sonâmbulo, ou se está apenas com sede, mas é melhor ter certeza do que está acontecendo. Escuto um barulho estranho do outro lado da porta e acelero meus passos. A escuridão me atrapalha, mas chego ao meu objetivo.

Abro a porta velha de madeira com cuidado e a sorte me felicita com o silêncio. Espero uns segundos para que meus olhos possam se acostumar com a falta de luz e observo. Samuel está parado em frente ao sofá, encarando duas formas pequenas que estão deitadas ali. Meu peito gela. Não sei o que são, mas tenho certeza de que coisa boa não é. Seus corpos brilham, duas silhuetas de crianças com iluminação que parece própria, falhando e vibrando, enquanto recebem o toque desengonçado de Samuel.

Eles não parecem zangados, mas também não parecem tristes, ou felizes. A verdade é que não dá para saber o que se passa dentro daqueles serem porque seus olhos são apenas mancha preta.

Também tem o ar, denso e seco, carregado de algo que aloja em minha pele, queimando e tremendo. Tudo que essa cena me inspira é medo, e nada de bom pode vir do medo.

Samuel continua lá, parado, com as duas mãos em cima daqueles seres. Tento seguir em frente, ou falar algo para interromper o que está acontecendo, mas me vejo paralisada, apenas observando meu amigo de anos dar permissão àqueles demônios para ficarem na minha casa.

 Meu coração está rápido, apesar de não sentir mais meu corpo, e assim me vejo quando tropeço para cima dele.

— O que você está fazendo? — grito — Se você acha que irei permitir isso na minha casa está muito enganado!

Samuel segura fortemente meus braços, tentando me impedir de fazer alguma loucura. Me sacudo debaixo dele. As duas imagens de crianças se encolhem no canto do sofá.

—Você tem que parar! — Samuel sussurra —  Não grita!

— Saiam daqui! — grito me direcionando às crianças — Vocês não têm permissão para ficar aqui! Saiam daqui em...

— Silêncio! — exclama Samuel tampando minha boca — Você vai atrair a velha!

Consigo me soltar depois de me sacudir violentamente. Samuel me olha diferente e me empurra de volta para o quarto fechando a porta atrás de si. Os espectros continuam no sofá da minha sala.

— Você é louco! Que velha? Como espera que vou atrair alguma coisa sendo que você já permitiu que dois demônios ficassem na minha casa! — exclamo com a imagem daqueles olhos escuros na cabeça.

É fácil ser enganado por aquelas imagens, afinal, se trata de duas crianças, um garotinho com camisa e shorts brancos e uma garotinha de vestido de babados, ambos maltrapilhos. Mas aqueles olhos, eu sei que há algo de errado com aqueles olhos, e a sensação que inspiravam no momento que os vi poderia ser tudo, menos inocência.

— Fica calma. — Samuel pede, e sinto minhas bochechas serem esquentadas por lágrimas — Você precisa confiar em mim, eles não são demônios, estão fugindo da velha.

— Do que você está falando?

— Eles ainda estão vivos, pelo menos por enquanto. Precisam encontrar uma forma de voltarem para seus corpos antes que seja tarde demais.

— Do que você está falando? — pergunto novamente.

Samuel me puxa para a cama. Me sento ao seu lado. Suas mãos em meus braços queimam.

— A velha os aprisionou no plano astral. Agora eles precisam encontrar uma forma de voltar para seus corpos antes que seja tarde demais. Eles são apenas crianças, precisam de ajuda. Eu preciso ajuda-los.

Meus olhos estão arregalados. Não consigo acreditar no que ele diz. Samuel se deita no seu canto e com as mãos atrás da cabeça me encara. Ele está louco. Completamente louco.

— Samuel, — falo — não existe isso de plano astral. Do que você está falando? Eles estão te enganando! Não tem como estarem vivos ainda! Você tem que tirar eles daqui logo!

— Não, você é que precisa acreditar em mim! — ele se senta na cama e olha em meus olhos firmemente — Eu sei do que estou falando, já vi acontecer, já vi a velha, já quase fui sugado por seus olhos. Eu não posso deixar essas duas crianças sós. — ele pousa as mãos em meus ombros — Eu sinto muito por te colocar nessa, não esperava que isso aconteceria hoje, se soubesse desmarcava com você, mas aconteceu e preciso fazer alguma coisa. Desculpa mesmo, juro que amanhã darei um jeito. Agora vai dormir, não deixo que nada aconteça contigo.

Olho para ele tentando falar algo. Suas palavras soam tão firmes, como se os dois espectros fossem apenas gatos de rua que ele quer criar. Mas não. Não são animais domésticos. Não tem nada de comum nessa situação. São translúcidos. Brancos. Seus olhos explodem escuridão. Não há nada de normal nisso.

Infelizmente Samuel interpreta meu silêncio com concordância e se deita para dormir. Passo um tempo parada, estou dormente, com medo. Me deito também e cubro todo o meu corpo na tentativa de me sentir mais segura. Horas se passam, ou minutos, e eu não consigo dormir. O quarto está um breu, porém meus olhos já se acostumaram com a escuridão, e é assim que consigo ver os dois seres atravessarem a porta e entrarem no meu quarto. Abro a boca na tentativa de expulsá-los daqui ou de chamar Samuel, porém o peso em meu peito me impede de falar qualquer coisa. Noto que estou em um estado de profundo pânico e desespero, como nunca estive anteriormente. Permaneço gaguejando, me sinto uma pessoa engasgada com o próprio sangue enquanto assisto as duas crianças pararem ao meu lado e olharem para mim. Seus olhos são tão feios. Consigo ver dor neles. Os espectros permanecem assim por alguns longos segundos antes de voltarem para a porta e atravessarem de volta para a sala.

Acordo de supetão com o som de cadeira sendo arrastada no cômodo ao lado. O dia amanheceu, o quarto está claro, Samuel não está mais aqui. Respiro algumas vezes antes de me levantar e caminho lentamente na direção da porta. Minha mão está tremendo quando giro a maçaneta. Tenho medo do que pode ter ali.

Abro a porta. O resto do meu grupo de amigos está todo aqui. Amanda sentada no sofá permanece encarando o teto. Mateus está concentrado em seu notebook, provavelmente assistindo algo. Vitor se olha no espelho com a cabeça levemente torta. Dou alguns passos adentrando na sala. Samuel está na cozinha preparando algo para comer. Nenhum sinal das crianças. Respiro fundo e sigo em direção a poltrona que Mateus está sentado. Me sento perto dele para ver o que está assistindo e a imagem de uma velha me assusta. Sacudo a cabeça e saio de perto. A história da noite passada havia mexido demais comigo e não podia deixar isso acontecer. Provavelmente havia sido apenas mais um pesadelo. Saio de perto de Mateus e vou falar com Vitor. Ele é o mais preocupado com a universidade e provavelmente vai tagarelar um pouco sobre o trabalho que precisamos concluir. Nunca me preocupei muito com essas coisas mas pelo menos ajuda a distrair.

— O que tanto olha aí? — pergunto — Tem alguma espinha nova?

Porém não tenho uma resposta. Franzo o cenho e o encaro mais cuidadosamente, porém dessa vez pelo espelho. Ele parece assustado. Fico em alerta. Estou quase indo para perto de Amanda perguntar porque está todo mundo estranho hoje quando percebo uma mancha ganhar forma no espelho.

A primeira coisa que vejo é sua roupa. Um vestido cinza de tecido duvidoso e folgado cobre seus ombros contornando o rosto acabado e branco que abriga olhos de piche. Tropeço ainda parada e grito. Samuel e Amanda aparecem rapidamente ao meu lado. Mateus vem logo atrás.

— O que aconteceu? — Samuel pergunta.

— Precisamos sair daqui. — exclamo e puxo eles na direção da porta.

Porém algo parece estranho. Meu corpo está leve e dormente. Olho para trás e me engasgo. São todos espectros, todos os meus amigos. Olho para mim.

— Samuel. — exclamo, nervosa.

Ele não demora muito para se dar conta do que aconteceu. Não consigo sentir meu coração, apesar de tudo em mim estar agitado. Observo os olhos dos meus amigos começarem a escurecer. Eles, que não entendem nada, olham para Samuel e para mim tentando encontrar uma explicação.

— O que fazemos? — pergunto.

Samuel permanece em silêncio, pensando. Ele olha para trás. Seguimos seu olhar, nossos corpos estão espalhados pela sala. Me impulsiono para perto do meu, na tentativa de entrar nele, mas Samuel me impede.

— Que foi? — pergunto.

— Talvez haja uma chance de derrota-la assim.

— Do que você está falando? — pergunto.

—Do que vocês estão falando? — Amanda pergunta assustada — O que está acontecendo com a gente? Nós morremos? O que aconteceu?

— Ela vive no plano astral. — Samuel diz alheio ao que qualquer um de nós falamos — Estamos no plano astral. Isso pode dar certo.

— O que? — pergunto.

Samuel olha para mim. Ele está estranho, se aproxima de mim e pega no meu braço. Não o sinto exatamente. Sinto apenas calor e algo mais. Vibração.

— A gente pode derrota-la. — ele diz — Não vai ser fácil. Podemos não conseguir, mas não podemos deixar que ela continue fazendo isso com inocentes.

Olho para meus amigos. Eles estão com medo. Também estou. Samuel sempre foi estranho, mas nunca esperei algo parecido com isso. Como explicar para eles o que está acontecendo? Como explicar para mim o que está acontecendo? Acho que vamos todos morrer.

Olho para Samuel e digo:

— Nós vamos conseguir.

 

 

 

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