Obra-Prima sobre o Amor -

Resenha | Habibi, de Craig Thompson.

Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.

Mostramo-nos e escondemo-nos tu em mim, eu em ti.

Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,

Porque não existe, entre tu e mim, nem mim, nem tu.

Rumi, poeta sufi (1207-1273).

É difícil falar de Habibi, de Craig Thompson. É uma daquelas obras que ficam nos rondando a consciência mesmo depois de lidas e que, mais do que uma narrativa, dão ao leitor uma experiência. E experiências não são apenas para se entender, mas também para sentir. De modo, caro leitor, que se o que você busca é uma diversão leve e digerível, Habibi não é para você, da mesma forma como uma pintura de Michelangelo, uma peça de Shakespeare ou um passeio por Jerusalém também não são. Ou uma série do Alan Moore, para ficarmos apenas na cultura pop. É deste nível de profundidade que estamos falando.

O tema da obra já aparece no título: “habibi” é “meu querido” em árabe. O tema é o amor, portanto. Mas também é um mergulho na cultura árabe e islâmica, permeada por questões modernas como desequilíbrio ambiental, racismo, sexismo e desigualdade social. E embora haja certa linearidade na trama, em vários momentos, a narrativa principal dá lugar a histórias paralelas tiradas da Bíblia, do Alcorão, da mitologia pré-islâmica e de inúmeros elementos que tornam a cultura muçulmana tão rica quanto pouco familiar ao leitor ocidental médio. Mesmo quando aparecem histórias mais conhecidas, como a de Abraão e Isaac, não é na versão judaica do Gênesis, mas na islâmica, dando a ela um sabor completamente novo. Vez por outra, a isso se acrescentam digressões sobre determinados elementos da história, como jinns e quadrados mágicos, mas que são incluídos com tanta fluidez e uma arte tão bonita que, quando se nota, já se foram 100 páginas. São fábulas dentro de uma fábula, como em As Mil e Uma Noites, fazendo jus às duas primeiras linhas da obra: “Da Pena Divina pingou a primeira gota de tinta. E aquela gota virou rio”. E, de fato, as palavras, as imagens, e com frequência as simples letras do alfabeto árabe se juntam em Habibi para uma sinfonia de sensações e significados de fazer inveja a Lewis Carroll.

Habibi conta a história de Dodolae Zam, que vivem num mundo que mistura elementos do mundo islâmico medieval com a modernidade. Assim, caravanas de camelos e sultões devassos convivem com automóveis e grandes represas. Dodola é vendida ainda criança pelo pai a um escriba, que se torna seu primeiro “marido” (se isso parece perturbador, melhor ler isto). Tempos depois, ele morre num assalto e ela vai parar num mercado de escravos, de onde foge junto com um menininho de 3 anos de uma das escravas adultas, que planejava matá-lo para que não se tornasse escravo. O menino — o “querido” do título — é batizado de Zam, em homenagem ao mito de Agar e Ismael, considerado o pai de todos árabes. Abrigados em um barco abandonado em um deserto que um dia foi o leito de um rio, Dodola consegue educar o menino contando-lhe histórias e mais histórias, enquanto ganha o pão de cada dia se prostituindo para os caravaneiros. Um dia, porém, Dodola é raptada por homens do sultão e trancafiada em seu harém, e Zam é deixado à própria sorte. A partir daí, a luta pela sobrevivência e a dor da separação se tornam a tônica de suas vidas trágicas — uma no ambiente traiçoeiro e mortal do palácio do sultão, e o outro na miséria árida do deserto e, mais tarde, nas ruas sujas da capital do reino. Mesmo distantes — ou nem tanto, sem que o saibam —, eles se buscam continuamente, pois representam um para o outro a única afeição real, a única relação verdadeiramente humana, que conheceram em meio às desgraças que se abateram sobre eles desde crianças.

Um aspecto que chama a atenção ao longo de Habibi é a discussão das nuances do amor. Amizade, fraternidade, o altruísmo para com os semelhantes mesmo diante da dificuldade, o desejo carnal (no seu aspecto mais delicado, mas também, e com maior frequência, na sua face mais grosseira, a luxúria), tudo isso é explorado de várias formas ao longo das vidas dos protagonistas. O amor de Zam e Dodola amadurece com eles, e se metamorfoseia várias vezes. Em vez de um único tom, comum em nossa cultura popular obcecada pelo romantismo, ele é um arco-íris que se estende ao longo dos anos e dá sentido a vidas muito sofridas. Mas não se trata apenas deles: outros personagens também refletem essa variedade, seja o pescador que, na mais abjeta miséria de uma favela contaminada, pratica a bondade até as bordas da loucura, ou os escravos que servem Dodola no harém e a protegem e guiam naquele ambiente onde um descuido pode significar a morte.

Craig Thompson passou oito anos pesquisando para fazer Habibi e isso se nota a cada página. Das citações de poetas, profetas e místicos à estética da caligrafia árabe, a obra é quase um catálogo de tesouros culturais. Mais do que uma graphic novel, trata-se de literatura, do tipo que dá sentido à expressão arte sequencial. E nestes tempos em que o Islã voltou a ser o saco de pancadas da vez dos medos e preconceitos do Ocidente — experimente uma busca pelo termo no YouTube brasileiro para entender do que estou falando, embora haja coisa melhor para fazer —, sua fábula atiça uma curiosidade saudável por uma das culturas mais importantes da história, tão negligenciada e distorcida neste lado do mundo. Ler Habibi é nos recordar dessa lacuna, ao mesmo tempo que é um convite para supri-la: há todo um universo de imagens, versos, lendas, histórias e sabedorias que nem imaginamos, e contudo moldam as vidas de pelo menos 1,5 bilhão de pessoas. Lembrar que todas essas coisas existem já é nos ampliar um pouco a mente, mas saber que isso pode ser feito com beleza e poesia, como Thompson conseguiu em Habibi, é renovar as esperanças na capacidade da arte de unir mundos que se pensam diferentes e mostrar que, no fundo, ainda compartilhamos da mesma condição humana. Um dos melhores coisas que já li na minha vida.

Autor: Craig Thompson

Tradução: Érico Assis

18cm x 23cm

672 páginas

 

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